O Guia do Mochileiro do Lockout – Volume 1 – De onde viemos
O Draft Brasil inicia hoje, uma série que pretende detalhar o que se passa com a liga americana. João Filho, membro do nosso fórum, fará uma série de textos que abordará o que é o lockout, porque acontece e em que pé anda as negociações.
Nesse primeiro, ele explica a história da CBA na NBA e o que aconteceu para chegarmos até o ponto atual.
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Todo ano é a mesma história: chega julho e a primeira coisa que o basqueteiro fã de NBA quer saber é quem seu time vai contratar, pra que time a estrela A ou B vai, quem vai tentar ousar numa troca, como vão ser as ligas de verão, etc. Passa o tempo, chega agosto, setembro, a pré-temporada, e todo mundo vai ficando cada vez mais ansioso para o início do campeonato. Esse ano, porém, os termos “free agent”, “trade”, “pre-season”, “training camp”, entre outros, estão ficando de lado, dando vez a um outro, meio estranho, que domina 10 de cada 10 manchetes sobre NBA: estamos falando, naturalmente, desse bichinho meio estranho chamado “lockout”.
A primeira pergunta que você deve se fazer é “afinal de contas, o que é esse tal de lockout?”. E a resposta é bastante simples, pelo menos em teoria: lockout é uma paralisação do trabalho (uma greve) promovida pelos patrões, em face de seus empregados, paralisação essa que suspende os contratos de trabalho daqueles trabalhadores pelo período em que durar a greve. O nome é bem claro, aliás: ”lock” (trancar) + “out” (fora), ou seja, o lockout é, em palavras singelas, o ato dos patrões de trancarem seus empregados do lado de fora de seu local de trabalho, impedindo-os de ali trabalhar.
O nome, sem dúvida, soa esquisito, e a ideia é ainda mais, uma vez que, em nosso país, o lockout é coisa proibida pela legislação trabalhista, e tida como crime pelo direito penal. Imaginem só se os donos de grandes empresas pudessem fechar suas fábricas, impedir o acesso dos trabalhadores aos locais de trabalho, e ainda por cima cortar o salário de todos eles. Naturalmente, a adoção dessas medidas daria aos empresários um poder absurdo de negociação com seus subordinados, podendo suprimir radicalmente todos os direitos trabalhistas dessas pessoas.
Nos Estados Unidos, porém, a história é diferente. As leis trabalhistas lá são muito mais permissivas em relação às condutas de patrões e empregados, não só porque a realidade econômica de lá é bastante singular, mas também porque, historicamente, os sindicatos patronais e trabalhistas são muito mais fortes que os nossos – ou seja, o efeito de um lockout lá não seria tão devastador como aqui. Ainda assim, as hipóteses nas quais o lockout é admissível por lá são restritas, porque se tem uma ótima noção do perigo que seria deixar os patrões agindo a seu bel prazer.
Então o lockout que está paralisando a NBA desde julho nada mais é que uma briga entre sindicatos? Sim, exatamente! Mas como chegamos nesse ponto é a pedra de toque para se entender a confusão em que estamos.
A NBA tem, sem dúvida, uma história estrelada, mas igualmente conturbada. No fim dos anos 40 e início dos anos 50, quando ainda era uma liga em gestação, muitas equipes abriam e fechavam, ao passo que diversas equipes eram verdadeiramente itinerantes. Nos anos 60 e início dos anos 70, a associação foi brevemente ameaçada pelo sucesso da ABA, sendo que ao final a primeira absorveu a segunda e se consolidou de uma vez por todas como a grande liga de basquete americana. No entanto, no início dos anos 80, brigas um pouco diferentes começaram a surgir. Ao invés de times ou ligas brigando entre si, jogadores e donos de equipes começaram a se estapear, conforme a liga se tornava um negócio cada dia mais sério.
A questão, em síntese, era mais ou menos assim: a NBA, até então, era uma terra sem lei, o que era péssimo para donos e jogadores pelos seguintes motivos: os donos não podiam ter muita garantia de que segurariam seus jogadores, eis que não haviam regras contratuais fechadas, além disso a ausência de regras para regular as relações entre as equipes era perigosa, uma vez que permitia a certas franquias gastar muito mais que outras para contratar jogadores. Por outro lado, os jogadores se sentiam escravos de seus donos, pela ausência de regras contratuais que lhes desse maior liberdade, e, ainda por cima, ficavam revoltados porque os donos faturavam fortunas em cima de seu trabalho, que era remunerado apenas por meio dos salários.
Dizem que em tempos de crise surgem os grandes homens, e, nessa oportunidade, surgiu um senhor de cara nova, que, supostamente, poderia consertar a NBA, com novas regras e doses extras de negociação e mais negociação. O nome do sujeito era David Stern.
Talvez os moradores de Charlotte, Vancouver, Seattle e afins tenham motivos de sobra para rejeitar os “talentos” de Stern – razões não faltam, garanto. Mas se há um mérito de Stern, é o de que, em 1984, quando assumiu o cargo de comissioner da NBA (o qual ele ocupa até hoje), conseguiu colocar donos e jogadores numa mesa e de lá saiu com um acordo que, enfim, colocaria ordem na NBA. Um acordo chamado Collective Bargaining Agreement, mais conhecido pela sigla CBA.
Para os mais acostumados com a área trabalhista, uma CBA se assemelha muito com a convenção coletiva de nosso direito, ou seja, nada mais é que a elaboração de regras trabalhistas vinculantes para o setor por meio da negociação entre os dois lados da relação laboral. Quando David Stern conseguiu que as duas partes assinassem essa CBA, muitos pontos controversos foram finalmente resolvidos.
Tentando resolver os maiores temores dos donos, foi imposto um teto salarial, chamado em inglês de “salary cap”, a fim de equilibrar as finanças das equipes e manter uma certa paridade na competição. O salary cap, porém, poderia ser continuamente excedido em casos específicos, previstos na CBA, o que manteria a maleabilidade do sistema, sendo que os donos que excedessem o teto seriam punidos com a aplicação de uma taxa especial a ser paga para a NBA, de nome “luxury tax”. Esse sistema, por meio do qual as equipes, em certas hipóteses, podem subir acima do teto salarial ilimitadamente é conhecido como “soft cap”, e se contrapõe aos sistemas nos quais existe um limite rígido que proíbe movimentações para cima do salary cap – o chamado “hard cap”.
Para resolver a maior reivindicação dos jogadores, por sua vez, foi estabelecido um sistema novo e bastante ousado, por meio do qual donos e jogadores dividiriam de forma mais ou menos equânime os lucros da liga – como podem imaginar, na era de Larry Bird e Magic Johnson esse valor já era alto, e certamente não diminuiu de lá pra cá.
Além disso, foram postas em prática algumas medidas que, de certa forma, atenderam aos dois lados, como por exemplo o estabelecimento de contratos com prazos rígidos, com um número de anos máximo estabelecido pela liga. O valor máximo desse contrato também seria limitado, em benefício dos donos, mas como contrapartida aos jogadores, os contratos de trabalho da NBA seriam integralmente garantidos, ou seja, o dono de equipe jamais poderia despedir seu jogador, podendo apenas negociar uma rescisão contratual com ele mediante pagamento – o chamado “buyout”.
Que aquela CBA ajudou a aplacar os ânimos, ninguém tem dúvida, eis que a NBA navegou pela segunda metade dos anos 80 e início dos 90 em águas tranquilas, aproveitando ainda a maré favorável das rivalidades entre Lakers/Celtics e Lakers/Pistons, além do rápido desenvolvimento de Michael Jordan. Quando se chegou em 1994, porém, as coisas começaram a azedar novamente.
Se a estrutura de 1984 teve méritos, ela também teve um problema, que, sem sombra de dúvida, é o que em grande parte nos conduziu ao lockout de 2011. Aquela CBA permitia que, mesmo com um teto salarial, as equipes mantivessem suas estrelas com facilidade, e ainda reforçassem seus plantéis sem maiores problemas. Isso, para alguns, engessou a liga, e foi uma das explicações da série de superequipes da época: Lakers, Celtics, Pistons, Bulls e Rockets; para esses, não foram equipes que cresceram e dominaram por coincidência, mas sim porque estavam numa liga mais favorável à concentração de talento.
Outro problema que surgiu, ligado ao apontado acima, foi a expansão da liga, da segunda metade da década de 70 até o início da década de 90. A maioria das equipes que entrou na NBA nessa fase teve problemas para encontrar seu lugar ao sol, e, ainda que tenham tido um brilhareco ou outro, não foram o que esperavam ser. Obviamente, queriam um sistema que lhes desse um novo caminho para o topo.
Por fim, um problema que começou a surgir no começo dos anos 90, com o crescimento da economia e radical aumento dos lucros da NBA, foi um rápido aumento no valor dos salários. Isto preocupou os donos, pois nem sempre o aumento dos lucros gerais correspondia a uma efetiva melhora econômica de seu time, de seu bolso e da região em que seu time estava situado.
Por esses motivos, no fim da temporada 1993-94, jogadores e patrões ameaçaram paralisar suas atividades, o que foi resolvido por uma CBA tampão de um ano. Em 1995, não conseguiu se negociar um pacto até a data de término da CBA, e ao final do período, os donos, pela primeira vez, decretaram que estariam impondo um lockout a seus jogadores. Aquela situação perdurou cerca de dois meses, mas ao final as partes conseguiram se compor por mais um ano. No ano seguinte, aliás, a NBA ficou por cerca de algumas horas sem CBA, mas por sorte foi encontrado um acordo rápido de médio prazo (6 anos) o qual poderia ser desfeito na metade do prazo previsto, caso se verificassem algumas circunstâncias financeiras.
No começo de 98, aquelas circunstâncias se implementaram – a margem de lucro dos donos caiu abaixo do mínimo previsto na CBA. Isso permitiu aos donos pedir o cancelamento daquele acordo ao final da temporada 1997-98, e voilà, sem um novo acordo, ocorreu o lockout de 1998-99, do qual muitos devem lembrar. Aquele lockout também não foi um acidente, tendo em vista que foi principalmente a partir da segunda metade da década de 90 que os salários começaram a subir com maior velocidade. Aliás, tanto não foi um acidente que aquela temporada não foi integralmente cancelada por muito pouco. Os jogadores, já desesperados por não receber salário por uns bons meses, fizeram algumas concessões, e os donos, assustados com uma NBA sem Michael Jordan e com uma longa paralisação, acabaram acertando uma nova CBA de seis anos.
O novo acordo, porém, não trazia grandes novidades nos pontos mais problemáticos da relação entre jogadores e patrões, o que também arrastou longamente as negociações no primeiro semestre de 2005. Entretanto, dois dias antes da CBA expirar, os dois lados, com um baita empurrão do Stern, conseguiram chegar a um novo acordo de seis anos. A economia americana ia bem, obrigado (tanto que várias equipes foram compradas por valores altos naquele período), então os dois lados acabaram não mexendo muito no vespeiro, sendo poucas as inovações daquele ano (talvez a redução da duração máxima dos contratos para seis anos, e a imposição de uma idade mínima para participar do draft tenham sido as mais importantes).
No entanto, mais ou menos dois ou três anos depois, como todos devem lembrar, a economia norte-americana começou a azedar – e junto, azedou a economia da NBA. Aqueles que colocaram 400 milhões de dólares na compra de times viram seus negócios aparentemente bons indo pro lixo, e muitos que já tinham time há muitos e muitos anos viram os lucros se transformarem em grandes prejuízos. Ora, em momentos de crise, a primeira coisa que você corta são os supérfluos, e entre deixar de gastar com a hipoteca da sua casa, a comida da sua família, e ingressos pra jogos da NBA, certamente são os gastos com NBA que vão rodar. Em megalópoles como Nova Iorque, Los Angeles e Chicago isso não é problema, mas em cidades de classe média e grande contingente industrial (como Detroit e Cleveland) com certeza é, e em cidades de médio porte, como Orlando, Phoenix, Portland, Milwaukee e outras, é um problema ainda maior.
O caso emblemático para entendermos isto é o do New Orleans Hornets. Depois de sobreviver ao Furacão Katrina e retornar pra Nova Orleans, acabaram sendo pegos por uma tempestade financeira absurda – seus principais cotistas, e, em especial, seu principal dono, George Shinn, perderam uma enorme quantia de dinheiro. O Hornets estava numa situação deficitária caótica., e, para piorar, ninguém nos EUA estava muito animado a comprar a equipe. Havia risco real de falência, o que, seria obviamente desastroso pra liga. A solução teve que ser drástica: a NBA comprou o Hornets de seus antigos donos, para evitar a quebra da equipe, o que gerou uma série de críticas e controvérsias dentro da NBA.
Além disso, um outro problema vinha consumindo a NBA há muito tempo, e, ao final da década passada se tornou insuportável: a falta de competitividade e rotatividade nas cabeças da liga. Entre 1984, quando foi passada a primeira CBA, e 2011, apenas oito equipes foram campeãs da NBA (Celtics, Lakers, Pistons, Bulls, Rockets, Spurs, Heat e Mavericks). Dentre essas oito, apenas Heat e Mavs conquistaram apenas um caneco, e apenas o Rockets não ganhou mais de dois títulos. Isto significa que, nas últimas 28 temporadas, cinco equipes (Celtics, Lakers, Pistons, Bulls e Spurs) ganharam juntas a absurda quantia de 24 títulos.
Os números são assustadores, mas ficam ainda mais tenebrosos quando comparados aos de outras ligas norte-americanas. Na MLB, que é muito criticada pela falta de regras limitando os gastos das franquias mais ricas, 17 equipes conseguiram ganhar a World Series de 1984 para cá. Na NFL, que teve um boom de popularidade nos últimos 10-15 anos, 15 equipes venceram o Super Bowl, e outras 11 estiveram na final no período entre 1984 e 2011 – ou seja, 26 das 32 equipes atualmente na NFL disputaram um Super Bowl nos últimos 27 anos, ao passo que apenas 16 das 30 equipes disputando a NBA chegaram a uma final no mesmo período.
Por esses motivos, os donos de franquias de cidades periféricas, já cansados dessa situação e das perdas financeiras, decidiram que não mais deixariam passar uma CBA que apenas mantivesse as coisas como estão. O interessante, porém, é que foram, em boa medida, apoiados por seus “primos ricos”. E isto tem uma boa razão de ser. A NBA, hoje, pode se aproveitar de uma certa popularidade graças a LeBron James, Kobe Bryant, entre outras estrelas carismáticas, mas nada garante que isso se sustentará pelos próximos anos. A liga não pode se dar ao luxo de jogar fora mercados pequenos, caso contrário sua popularidade ao longo prazo despencará, já que NFL, MLB e NHL podem fornecer uma alternativa bem mais interessante pros moradores de cidades como Phoenix, Cleveland, Denver, New Orleans, etc.
Dessa forma, desde 2009 começava a se anunciar um novo alinhamento na NBA, e, dois anos depois, os donos demonstraram irredutibilidade com as propostas de melhoria dos jogadores. Assim, não foi surpresa que as negociações fracassaram, e os donos puderam, com o fim da CBA, decretar um novo lockout.
Bem, agora já sabemos porque tivemos um lockout. Mas ainda precisamos determinar quais são os pontos contenciosos das negociações, o que quer se mudar, como pode se mudar, e o que pode acontecer daqui pra frente. Mas isso fica para o próximo capítulo.
João F. Filho