O Guia do Mochileiro do Lockout – Volume II – O que está em jogo
Nosso guia do lockout está de volta! Nessa segunda parte João Filho nos apresenta os números e quais os os termos dessa disputa que paralisou o basquete da NBA.
Boa leitura!
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Bem vindos de volta para nossa análise do lockout. Em primeiro lugar, informamos que as reuniões da última semana fizeram com que tivéssemos que esperar um pouco pra soltar este texto, até porque dependendo do que fosse decidido pelos donos e jogadores, talvez tudo que tivéssemos escrito seria inútil e sem sentido. Agora, aliás, o cenário está mais claro do que nunca, então poderemos avaliar muito bem em que pé a NBA está hoje.
No capítulo anterior, discutimos como a NBA se viu afetada por dois sérios problemas que já vinham a atormentando de longe, e que agora se tornaram intoleráveis para os donos das equipes: acima de tudo, como dissemos, os problemas se centram na pouca rentabilidade da Liga e na falta de competitividade que vem frustrando muitos fãs e alguns donos.
Tentaremos agora explicar, de um jeito bastante simplificado, quais são os problemas que afetam a NBA, e que estão arrastando as negociações por mais de três meses. Como vocês podem imaginar, resolver problemas de rentabilidade e competitividade inevitavelmente passa por mexer nos interesses dos jogadores, e é isto que gera tanto conflito nas tentativas de reforma que os donos têm considerado.
Tratando especificamente das divergências entre donos e jogadores, podemos destacar dois pontos de discórdia entre os dois lados, que logo passaremos a explicar. Podemos dividir as questões controversas em questões econômicas e questões estruturais.
Entender as questões econômicas é um pouco mais fácil, até porque sua estrutura é bastante simples. Como explicamos em nosso último texto, desde 1984 a NBA usa um sistema bastante interessante de garantir aos jogadores acesso a uma parte dos rendimentos da Liga, como forma de remunerá-los pelo sucesso da NBA. E como vocês podem imaginar, as receitas da NBA não são pequenas.
Pelo atual sistema, que deve ser em grande parte mantido numa nova CBA, definem-se uma série de fontes de receita dos clubes e da NBA em si como fontes de receita ligadas ao basquete, ou, em inglês, basketball related income (BRI). Para compor o BRI, são utilizadas diversas fontes de receita, como ingressos, estacionamento em dia de jogo, direitos de transmissão em rede nacional, camisetas, patrocínios, etc. Para se ter uma noção, na temporada passada a NBA arrecadou 4,3 bilhões de dólares, sendo que 3,8 bilhões entravam na categoria de BRI.
Aqui a coisa começa a ficar interessante. Desde 1999, os jogadores tem direito a uma fatia equivalente a 57% do BRI, ou seja, mais de 2 bilhões de dólares são garantidamente dos jogadores, sendo faturada pelos donos de equipes uma quantia de apenas 43% do BRI.
Como mencionamos em nosso texto anterior, os donos estão, atualmente, num buraco de cerca de 300 milhões de dólares. Isto significa, fazendo contas bem rápidas, que uma mudança nos valores de divisão do BRI sozinha poderia garantir uma entrada de recursos na Liga suficiente para diminuir muito ou até acabar com os prejuízos dos donos de uma tacada só.
Por esse motivo, quando se iniciaram as negociações, os donos passaram a propor uma inversão bastante radical na forma de distribuição do BRI, passando eles a receber cerca de 57% do BRI, e deixando 43% para os jogadores. Naturalmente, ninguém dentre os jogadores gostou da ideia, até porque a redução do BRI é a redução de seus salários e seus ganhos.
Inicialmente os jogadores se mostraram irredutíveis em reduzir sua porcentagem do BRI em apenas 3%, para 54%. No entanto, ambos os lados mostraram uma certa vontade de ceder, e os donos perceberam que sua proposta jamais passaria pelos jogadores, tendo sido muito mais um blefe para pressionar os jogadores que qualquer outra coisa. Hoje se especula que a porcentagem do BRI dos jogadores ficará em algum lugar entre 50% e 53% do BRI, sendo que ambas as partes têm se contradito acerca de quem está a fim de ceder o quê. Considerando que a diferença entre as partes, antes, era de cerca de 11% do BRI, a diferença estar em 3% agora já é uma vitória.
Para os donos, reduzir o BRI dos jogadores para algo em torno de 51-52% (e elevar o seu para 48-49%) ainda não seria suficiente para cobrir o déficit da Liga, mas já o reduziria em cerca de 200 milhões de dólares. Os outros 100 milhões, em tese, poderiam ser cobertos de outros modos. Cabe ressaltar, porém, que um objetivo dos donos é garantir que a NBA não seja um “jogo de soma zero”, ou seja, a intenção é garantir uma parcela de lucro para as 30 franquias, por mais modesto que seja esse lucro. Tenham sempre isso em mente para tentar entender a rigidez de ambos os lados nas negociações.
Relativo ao BRI, também é importante destacarmos que o cálculo do BRI também pode sofrer alterações, naturalmente. Diminuir o número de fontes de receita que integram o BRI seria positivo para os donos, eis que uma quantidade maior de verbas ficaria fora da divisão. Para os jogadores, naturalmente, isso seria negativo.
Existe um outro ponto importante em relação ao BRI, que deve ser lembrado, em especial quando formos tratar da segunda parte das questões controversas. Utiliza-se o BRI, hoje, como fator de elaboração do salary cap, das luxury taxes, do salário mínimo e máximo, entre outras questões importantes. Basicamente, o que a CBA faz é arbitrar um percentual do BRI como parâmetro que determinará o salary cap de uma temporada, assim como acontece com todos os outros valores que acabamos de mencionar. Assim, embora as percentagens possam ser mudadas, sem dúvida nenhuma uma redução do BRI poderia implicar também na redução dos valores que mencionamos agora.
Vistas as questões econômicas, que tocam mais ao lucro dos donos e salário dos jogadores que qualquer outra coisa – uma briga entre bilionários e milionários por dinheiro, digamos assim – podemos analisar a segunda parte das discussões, que afeta muito mais a competitividade da Liga e o basquete propriamente dito. São as tais questões estruturais que citamos acima.
O modelo estrutural da NBA, que vem da década de 80 pra cá, é um modelo falido. Isto ficou muito claro ao longo do último ano, em que vimos LeBron James, Chris Bosh, Deron Williams e Carmelo Anthony fazendo de tudo e mais um pouco para conseguir formar mega-esquadrões em cidades grandes e glamourosas. O mesmo pode ser dito do Lakers, que, ao longo da década passada, conseguiu dar um salário absurdo pro Kobe Bryant (com toda a justiça), e ainda assim conseguiu uma troca mirabolante para adquirir Pau Gasol, e isto sem ter que abrir mão de Andrew Bynum ou Lamar Odom. Idem para o Celtics, que em questão de dias conseguiu sair do zero pra montar um esquadrão com Kevin Garnett, Ray Allen e Paul Pierce.
O que acontece na NBA, basicamente, é que o teto salarial da Liga, como explicamos no último capítulo, pode ser repetidamente contornado – por isso a denominação soft cap. Como as equipes podem adquirir salário continuamente, dentro de certas condições, fica muito fácil acumular grandes jogadores por meio de trocas, e ainda mais fácil é segurar esses jogadores nas novas equipes com mega-salários, e reforçar essas equipes com bons jogadores de elenco. Isto levou a NBA, nos últimos anos, a se tornar uma Liga com uns cinco ou seis mega-esquadrões, localizados em grandes cidades de bastante apelo comercial, legando-se a uma série de equipes (pelo menos umas dez) reiterados fracassos e a contínua perda de suas estrelas nascentes. O sistema precisava mudar, e até mesmo os donos de grandes franquias perceberam que precisavam mudar pelo bem da Liga.
Para mudar o atual sistema da NBA, diversas são as reformas que se fazem necessárias, mas uma delas é a mãe de todas as que podem vir pela frente. Não se concebe uma reforma da NBA sem uma mudança profunda na atual sistemática de teto salarial, que faça com que o salary cap seja um fator de promoção de paridade na Liga, e não mais uma formalidade facilmente contornável.
Por este motivo, a primeira ideia dos donos foi a de converter o sistema salarial da Liga em um sistema de hard cap, como o da NFL. Como antecipamos anteriormente, um sistema de hard cap é um sistema no qual o teto salarial existente é virtualmente incontornável, ou seja, nenhuma equipe pode subir acima do salary cap por meio da contratação ou renovação de jogadores, e, caso suba com o progressivo aumento do salário de seus jogadores, ficará impedida de fazer novas contratações e de renovar com seus free agents enquanto não retornar para baixo do cap.
Os jogadores, naturalmente, são radicalmente contrários ao hard cap. O hard cap teria o efeito de acabar com a possibilidade de all stars formarem mega-elencos como o do Heat e o do Lakers, além de resultar num possível achatamento dos salários, já que os donos se veriam obrigados a gastar com muito mais parcimônia.
A NBA sabe que será praticamente impossível, hoje, fazer os jogadores concordarem com o hard cap, que já é realidade na NFL e na NHL. Mas eles também sabem que a NBA precisa de reformas urgentes nesse sentido, e, por isso, têm apresentado uma série de propostas que tornarão o salary cap hoje existente consideravelmente mais rígido. Assim, mesmo que o hard cap não seja adotado pela nova CBA, certamente algumas das reformas discutidas serão implementadas assim que o lockout acabar.
A primeira reforma discutida, que dificilmente não vingará (ainda que com algumas mudanças) é a de um sistema muito mais punitivo de luxury taxes. As luxury taxes, como o nome indica, são uma taxa especial imposta pela NBA às equipes que “esbanjam” em seus gastos Hoje, a equipe que excede o salary cap em cerca de 10 milhões de dólares está sujeita a uma taxa de um dólar para cada dólar em que a faixa de luxury tax for excedida. Ou seja, uma equipe que exceda a faixa da luxury tax em 15 milhões de dólares, por exemplo, se sujeita a pagar 15 milhões de dólares em luxury tax pra Liga, sendo a verba arrecadada redistribuída entre as franquias que não excedem esse limite.
O problema da luxury tax de hoje é que ela não é punitiva. Isto porque para equipes como Mavericks, Lakers, Knicks e Nets, pagar mais de 20 milhões de dólares não é custo nenhum, e mesmo que seja, é compensado pelo lucro gerado pelas grandes marcas que são, ou então pela fortuna infinita de seus donos.
A proposta dos donos, hoje, é adotar um sistema progressivo de taxação para as equipes que subam acima do cap, pelo qual, dependendo do tanto que a equipe passasse do valor do cap, chegaria a pagar até oito dólares para cada dólar excedido. Pelo sistema proposto pelos donos, uma equipe que exceda em 20 milhões de dólares o salary cap (caso de um Lakers da vida) estará sujeita a mais ou menos 54 milhões de dólares em luxury taxes. Com um sistema tão punitivo como esse, pouquíssimas equipes se dariam ao luxo de pensar em subir acima do cap, muito embora ele ainda pudesse ser vantajoso para um Lakers, um Knicks ou um Mavs. Além disso, as verbas arrecadadas desses impostos seria um impulso bem maior para as equipes menos fortes, já que aqueles que ousarem subir acima do cap estariam sujeitos a esta cobrança bem mais acentuada.
Para evitar o eventual problema que poderia decorrer dos gastos irrestritos por um clubinho restritíssimo de franquias, outra ideia foi recentemente levantada pelos donos: as equipes que passassem certo número de temporadas acima do limite do cap pagariam suas luxury taxes com pesadas multas, que poderiam até triplicar as alíquotas progressivas. Isto poderia resultar em equipes facilmente pagando mais de 100 milhões de dólares de taxes, o que praticamente garantiria o respeito de todos ao cap.
O segundo projeto de mudança dos donos, ainda mais ousado que este primeiro, seria uma radical revisão dos Larry Bird rights, hoje conhecidos simplesmente como bird rights. O nome, que indica um dos primeiros afetados pela regra, trata do direito de uma franquia de subir acima do cap ou de ir ainda mais acima do cap do que já está para renovar com determinado jogador de seu plantel. A regra, que se aplica a jogadores que já estão sob contrato por um determinado período de tempo (até o ano passado três anos) não tem quaisquer limitações, sendo que a equipe fica livre para pagar todos os free agents que tiver, e a única limitação é o salário máximo da Liga (que, vale lembrar, só pode ser oferecido pela equipe que detém os bird rights do jogador).
As mudanças dos bird rights que se vislumbram são em dois aspectos. Em primeiro lugar, deseja-se estabelecer um limite máximo de utilização de bird rights – talvez restringir a um uso por temporada, aumentando a rotatividade dos free agents. O segundo aspecto, mais polêmico, seria limitar ou vedar o uso de bird rights por equipes acima do cap, ou seja, estabelecer uma regra que permita o uso de bird rights apenas duas ou três vezes a cada cinco anos por equipes acima do cap, ou então simplesmente proibir o seu uso para essas equipes – foi o proposto pelos donos recentemente.
Outras ideias que são discutidas, como forma de garantir o respeito ao cap, são a perda de escolhas no draft e a vedação do uso de exceções para contratação de jogadores para as equipes que passem o limite do cap, como forma de puni-las. Se discutiu a possibilidade de endurecer totalmente o cap para as equipes que passem do salary cap, mas não me parece que os jogadores permitiriam esta mudança em particular, sendo as descritas acima mais plausíveis.
Quanto às exceções, que mencionamos de passagem no parágrafo anterior, uma que certamente será muito modificada e restrita é a Mid-Level Exception (MLE). Por meio da MLE, todas as equipes na NBA, incluindo aquelas acima do cap, tem o direito de contratar um jogador por temporada pagando a ele salário equivalente à exata média dos salários da Liga. Além de permitir que equipes fortes se fortaleçam ainda mais com a MLE (caso do Lakers trazendo o Ron Artest, ou Metta World Peace, como quiserem), a MLE acabou se tornando o paradigma de negociação de todos os jogadores medianos da Liga, o que faz com que a Liga tenha vários jogadores medíocres recebendo salários relativamente altos por conta da MLE. Já se tem em mente que o valor da MLE diminuirá bastante, e a duração dos contratos de MLE deve diminuir também.
Em termos de trocas, duas são as principais mudanças que se deseja. A primeira é a extinção daquelas sign-and-trades, que são as trocas em que uma equipe renova com seu jogador e imediatamente o troca para uma outra equipe. Além disso, também quer se limitar muito as chamadas extend-and-trades, que são as trocas em que uma equipe dá um novo contrato para o jogador durante a temporada e imediatamente o troca para outra equipe (caso do Carmelo Anthony na última temporada). A proibição desse tipo de troca acabaria com o chororô de certos jogadores durante a temporada pedindo para serem trocados para equipes de grandes mercados, filme que vimos várias vezes nos últimos anos, e também acabaria com a farra dos jogadores que arrumam sign-and-trades apenas para conseguir um contrato máximo e logo depois serem trocados (caso recente do LeBron e do Bosh). Tais proibições, cumuladas com as mudanças na estrutura salarial descritas acima, certamente aumentariam a competitividade da NBA, fazendo da Liga uma coisa bem mais atrativa para os mercados menores.
Em termos de contratos, duas são as mudanças que estão sendo discutidas. Já é certo que a duração máxima dos contratos será reduzida – hoje o máximo é cinco anos, via de regra, e seis anos para os detentores de bird rights. Os donos querem reduzir o máximo para três anos, com quatro para os detentores dos bird rights. Os jogadores admitem diminuir o máximo para quatro anos, com o quinto ano extra para o caso de bird rights.
Quanto ao valor dos contratos em curso, sabe-se que para que a construção da nova estrutura salarial seja possível, será indispensável uma redução geral de salários na Liga. Assim, para evitar que os futuros free agents paguem uma conta muito alta, com um super achatamento de salários, os donos propõem que os jogadores hoje sob contrato se sujeitem a um corte progressivo no valor de seus salários: 5% na primeira temporada, 7,5% na segunda, e 10% na terceira.
Basicamente, estes são os pontos mais nebulosos da atual negociação entre donos e jogadores, que precisam ser superados para que uma nova CBA seja feita e o lockout encerrado. Outras questões estão em jogo, e as negociações devem continuar tensas pelas próximas semanas. Assim, nos próximos capítulos, lhes daremos mais detalhes sobre como as coisas vão indo, quais são os outros problemas que precisam ser resolvidos, e quais as perspectivas de melhora (ou piora) para as negociações.