Rens e Globetrotters: iguais, mas diferentes

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Publicado em: 26/05/2013

Este é o segundo texto da série O Negro no Basquete Americano

NY Renaissance

Em meados da década de 1920 apareceu no coração do Harlem (bairro negro de NY) um time que assombrou a primeira metade do século XX: o NY Renaissance ou Renaissance Big Five ou apenas Rens. Foi o primeiro time profissional dos EUA em que o dono, o técnico e jogadores eram negros.

Bob Douglas. Foto: Reprodução

Bob Douglas. Foto: Reprodução

Criado em 1922 por Bob Douglas, um negro que emigrara do Caribe, o Rens nasceu no meio do movimento cultural conhecido como Harlem Renaissance.  Este movimento estava intimamente ligado à Grande Migração de negros americanos, que fugiam das leis segregacionistas dos estados do Sul em direção às cidades do norte e do centro-oeste. Com a chegada desse mundaréu de gente, o Harlem passou por uma efervescência cultural sem tamanho. Surgiram escritores, artistas plásticos e músicos, representantes de uma expressão cultural que buscava ser genuinamente negra e se propunha a discutir temas relacionados à condição do negro na sociedade americana.

Mas, curiosamente, o nome do time não surgiu devido a uma identificação – pelo menos não diretamente – com o movimento Harlem Renaissance. Bob Douglas fez um acordo com o dono afro-americano de um cassino chamado, vejam só, Renaissance: o time adotaria o nome do cassino e, em troca, jogaria suas partidas na pista de dança do estabelecimento. As partidas do Rens no cassino foram um sucesso, as pessoas se amontoavam nas sacadas para assistir os jogos e após o apito final o público descia para dançar ao som de Fletcher Henderson, Count Basie, Duke Ellington ou Ella Fitzgerald. Há um senso comum que associa o jazz com o basquete nos EUA (pelo menos em sua origem), de uma forma muito parecida que há entre o samba e o futebol aqui no Brasil. A capacidade de improvisação, o ritmo, a dança.

Naqueles anos, com algumas poucas exceções, era negado o acesso dos times de negros às principais ligas dos EUA. Para poder jogar, o Rens adotou uma prática comum na época, tornou-se um time itinerante que ia de cidade em cidade para disputar partidas contra os times locais, tais times itinerantes eram conhecidos como Barnstoming teams.  Mesmo sem competir em ligas oficiais, O NY Renaissance jogava de 4 a 5 jogos por semana.

Como visto na parte um dessa série, a primeira metade do século XX foi marcada pela segregação racial nos EUA. Quando jogavam no Norte usavam Chicago como base, viajavam até as cidades próximas e retornavam para Chicago, pois eram proibidos de alugar um quarto de hotel. Quando iam para o Sul a maioria dos seus adversários eram de times de negros. Sofriam para encontrar hotéis, banheiros e lugares para comer. Quando ocorria um jogo contra um time de brancos a tensão racial era ferrenha. Eram rotineiramente insultados durante os jogos (o público xingava, atirava objetos, derrubava os jogadores quando próximos da arquibancada). Mas a melhor resposta era dada dentro de quadra: qual não é a melhor forma, ainda que simbólica, de se levantar contra essa situação do que bater o time de brancos local? Ainda mais jogando contra mais de cinco adversários: cinco jogadores, os juízes e o público.

Mas e o basquete? Os jogadores que passaram pelo Renaissance, como John Isaacs, “Tarzan” Cooper, Fats Jenkins, “Puggy” Bell, “Shag” Burnett, “Pop” Gates, Zack Clayton, “Wee Willy” Smith, Eyre Saitch, segundo relatos de quem presenciou o time em quadra, tinham um jogo…maravilhoso! Coisa única na época. Pouco espaço para o individualismo, marcação forte e uma linha de passe frenética e irresistível. Para se ter uma idéia, durante a temporada de 1932-1933 o Rens ganhou 88 partidas seguidas. Na temporada inteira foram 120 vitórias contra apenas 8 derrotas.

NY Rens de 1933, com Bob Douglas no detalhe. Da esquerda para direita: Clarence ‘Fats’ Jenkins, Bill Yancey, John Holt, James ‘Pappy’ Ricks, Eiyre Saitch, Charles ‘Tarzan’ Cooper, William ‘Wee Willie’ Smith. Foto: Reprodução

Harlem Globetrotters

Certamente o Harlem Globetrotters é mais famoso entre nós brasileiros do que NY Renaissance. Teve uma origem diferente quando comparada com o Rens, o Globetrotters foi fundado em 1927 por Abe Saperstein, um imigrante branco inglês. Apesar de conter “Harlem” em seu nome o time era de Chicago. Saperstein adotou o nome do bairro de NY para deixar claro que o Globetrotters se tratava de um time apenas de negros como uma estratégia de marketing safada.

Assim como o Rens, o Globetrotters também se transformou em um time itinerante e passava pelos mesmos problemas pelos quais qualquer time de negros passou na época. No entanto, a proposta de jogo do Globetrotters, mais acrobático e fantasioso, era mais acessível ao público, principalmente aos brancos. Há diversas lendas sobre o desenvolvimento do estilo de jogo do Globetrotters, uma delas diz que o time era obrigado a enrolar durante a partida por ser muito superior que os times locais e abrir uma larga vantagem significava perder contratos para partidas futuras. Independente da origem, foi esse estilo que fez o Globetrotters se sobressair e, também, foi um dos alvos das críticas mais severas.

Muita gente afirma que o Globetrotters representava uma “Harlem mais agradável”, um show de negros exóticos para uma audiência de brancos, de negros mais condizentes com o que um branco esperaria de um negro. Talvez seguindo a tradição de um tipo de apresentação teatral horrorosa que fez muito sucesso no século XIX, conhecido como Blackface minstrelsy, em que atores brancos pintavam o corpo de preto para interpretar negros. O Blackface minstrelsy foi um dos responsáveis por propagar uma série de estereótipos racistas.  Simbolicamente, palhaçadas em quadra, um jogador driblar o time inteiro enquanto os outros jogam dados, ou jogadores fazendo caretas durante a partida não seriam mais que variações de estereótipos do negro como infantil ou preguiçoso. Connie Hawkins, ex-jogador do Globetrotters, chegou a afirmar que a popularidade do time só veio porque os jogadores eram instruídos a atuar como “Uncle Toms”, um termo pejorativo que denota um negro subserviente que busca constantemente a aprovação dos brancos.

Reprodução de pôster de um show de Blackface Minstrel de 1900, mostrando a transformação de William H. West.

Reprodução de pôster de um show de Blackface Minstrel de 1900, mostrando a transformação de William H. West. Foto: Reprodução

É uma posição oposta ao Renaissance. Enquanto o Rens representava um time que entrava para ganhar, apresentando uma forma revolucionária e efetiva de se jogar e era capaz de competir de igual para igual, inclusive, contra os principais times de brancos da época, o Globetrotters resgatava uma imagem de negro para entreter e fazer rir, a competição importava menos do que divertir a audiência, reforçando uma série de imagens preconceituosas que os brancos carregavam em relação aos negros. Enfim, em uma sociedade capitalista ainda fortemente vinculada a tradição escravista, uma mensagem como “sim, nós negros podemos competir em igualdade contra vocês” do Rens era impactante, tanto para a auto-estima dos negros americanos, quanto como era percebida como uma ameaça à hegemonia econômica, social e esportiva dos brancos na época.

Entretanto, tecnicamente o Globetrotters não era um time limitado, pois, era possível perceber o quanto seus jogadores eram bons quando a partida era para valer e o time deixava o entretenimento lúdico de lado para jogar a sério. Atualmente alguns estudiosos atribuem ao estilo de jogo do Globetrotters algumas jogadas espetaculares que ocorrem pelas quadras da NBA. Durante toda sua história, o Globetrotters contou com alguns fantásticos jogadores, como Marques Haynes, Reece “Goose” Tatum (credita-se a Goose a invenção do gancho), Fred “Curly” Neal e, o mais famoso de todos, Wilt Chamberlain.

Os confrontos

Um dos adversários mais memoráveis do Rens foi o New York Celtics (que não tem parentesco com o time de Boston), composto apenas por brancos e reconhecido atualmente como Original Celtics. Era uma das principais forças da época e, na década de 1920, contava com jogadores como Dutch Dehnert, Nat Holman e Joe Lapchick. Enfrentando o Rens de Frank Forbes, Harold “Fat” Jenkins, Leon Monde, “Wee” Willis Smith e o grandalhão craque do time Chuck “Tarzan” Cooper, os jogos envolviam o que de melhor havia em quadra e muita tensão nas arquibancadas. Um jogo entre dois ótimos times de basquete já atraia muita gente, agora adicione o componente racial para se ter partidas com mais de 15000 pessoas presentes. Relata-se que a violência literalmente explodia fora das quatro linhas, no entanto, há de ressaltar que ocorria justamente o contrário entre os jogadores. Joe Lapchick se tornou um grande amigo de Bob Douglas, além de ser um admirador inconteste de “Tarzan” Cooper. Lapchick, considerado um dos primeiros grandes pivôs da história, costumava dizer que Cooper poderia jogar de igual para igual contra ele no um contra um. Em 1925 a American Basketball League (primeira tentativa de se criar uma grande liga de basquete nos EUA) não admitiu a participação do Rens na competição, o Original Celtics, em solidariedade, se recusou a entrar na Liga e não disputou o campeonato daquele ano. Segundo Richard Lapchick, filho de Joe Lapchick, quando alguém dizia a seu pai que o Original Celtics foi o melhor time que já vira jogar, Joe Lapchick corrigia: “O Rens era tão bom quanto a gente quando começaram e melhor do que nós no final”.

Joe Lapchick (esquerda) do Original Celtics e "Tarzan" Cooper do Rens

Joe Lapchick (esquerda) do Original Celtics e “Tarzan” Cooper do Rens. Foto: Reprodução

O Rens e o Globetrotters foram convidados em 1939 a integrar o World Professional Basketball Tournament, campeonato organizado pelo jornal Chicago Herald American em formato de torneio – quem perdesse era eliminado. Foi a primeira competição que permitiu a participação de jogadores negros e brancos. Estendeu-se de 1939 até 1948 (a NBA seria fundada no ano seguinte) e, ao longo dos anos, o fino do basquete americano desfilou pelas quadras: OMarques Haynesshkosh All-Stars, Indianapolis Kautskys, Fort Wayne Pistons, Minneapolis Lakers,  Sheboygan Redskins, Original Celtics e outros.

Na primeira edição, em 1939, deu NY Renaissance. O Rens bateu o Globetrotters na semi-final por 27 a 23.  Na final enfrentou o poderoso Oshkosh All-Stars, que na temporada de 1938-1939 havia sido vice-campeão da National Basketball League (uma das ligas pré-NBA) e seria finalista da NBL por 5 anos consecutivos, entre as temporadas de 1937-38 e 1941-42. O Renaissance venceu por 34 a 25, sendo declarado o primeiro campeão do World Professional Basketball Tournament. Puggy Bell do Rens foi eleito MVP do campeonato.

Em 1940 o Globetrotters deu o troco, em um jogo equilibradíssimo venceu o Rens nas quartas de final por 37 a 36. Na semi final venceu o Syracuse Reds por 34 a 25 e bateu o Chicago Bruins na final por 31 a 29. Sonny Boswell do Globetrotters foi declarado MVP do campeonato.

Globetrotters de 1940, campeão do World Professional Basketball Tournament. Da esquerda para direita: secretário Chuck Jones, Babe Pressley, Sonny Boswell, Hillary Brown, Inman Jackson, Ted Strong e Bernie Price

Globetrotters de 1940, campeão do World Professional Basketball Tournament. Da esquerda para direita: secretário Chuck Jones, Babe Pressley, Sonny Boswell, Hillary Brown, Inman Jackson, Ted Strong e Bernie Price. Foto: Reprodução

A decadência e a ascensão

Em 1948 ocorreu a última edição do World Professional Basketball Tournament, o Renaissance chegou a final novamente, agora contra o Minneapolis Lakers de George Mikan (considerado o melhor jogador da primeira metade do século XX). O Lakers derrotou o Rens por 75 a 71. Mas, mesmo com essa final, o Rens foi perdendo espaço. Em contrapartida, o Globetrotters, contando com Marques Haynes e Reece “Goose” Tatum, se tornou dominante na década de 1940 batendo, inclusive, o Lakers em 1948 e 1949. Em 1949 Bob Douglas, em virtude de dificuldades financeiras, vendeu o Renaissance para Saperstein.

Minneapolis Lakers vs. Harlem Globetrotters. Foto: Reprodução

Minneapolis Lakers vs. Harlem Globetrotters. Foto: Reprodução

A partir da década e 1950, com a integração de jogadores negros e brancos nos principais times dos EUA, o Globetrotters começou a perder a capacidade de atrair os maiores talentos negros (claro, com algumas exceções, como Wilt Chamberlain em 1958-59), e tornou-se um time apenas de entretenimento, deixando de lado as competições oficiais. Foi a partir desta década que o time virou um fenômeno mundial. Tornaram-se constantes as excursões internacionais, aparições em programas de TV, desenhos animados, filmes e outros.

Pode ser creditada ao Globetrotters e a Saperstein parte da criatividade e do show presente no DNA do jogador americano, mas houve sim um preço a se pagar. Sem dúvida, Saperstein tinha um tino marqueteiro apurado, mas nenhuma responsabilidade com a situação do negro. O perfil de homem de negócios de Saperstein era diferente ao perfil de Bob Douglas. Um primeiro ponto a se ressaltar é que Bob Douglas dividia igualitariamente a renda gerada nos jogos com os jogadores, prática que Saperstein até adotou no início, mas após um tempo resolveu estabelecer um valor fixo a ser pago para cada um que, invariavelmente, significava pagar menos aos jogadores e lucrar mais. Saperstein soube captar o que o branco pagaria para ver, o branco americano daquela época queria o Uncle Tom, queria o ator com o rosto pintado de preto. Bob Douglas, pouco antes de morrer, em 1979, disse: “Abe Saperstein morreu milionário porque deu aos brancos o que eles queriam ver. Quando eu morrer, irei sem um centavo no bolso, mas com a consciência tranqüila”.

Ao longo da história, reivindicar direitos só foi possível com uma boa dose de enfrentamento. Não foi sem luta que os trabalhadores conseguiram expandir seus direitos trabalhistas, que atualmente os homossexuais brigam para ter reconhecidos todos os seus direitos civis e que os negros americanos combateram a segregação racial. O Rens foi um representante importante desta luta. Mesmo sem ter um discurso pronto, o NY Renaissance significou uma tomada de posição no campo esportivo, um discurso político traduzido na forma de jogar dentro das quatro linhas. Imagino que poderíamos exprimir sua posição como: “Sim, somos negros e podemos bater qualquer time. Jogamos para ganhar. Enfrentamos o seu time, o seu público, seus xingamentos. O negro comum vai ter seus próprios heróis em quem se espelhar. E estes heróis somos nós”.

NOTA:

Kareem Abdul-Jabbar foi um dos responsáveis por um documentário bem maneiro sobre o NY Renaissance, chamado On The Shoulders of Giants. É possível encontrar na Baía dos Piratas.

Spike Lee, aquele mesmo torcedor fanático do Knicks, fez um filme que tem o Blackface minstrelsy como tema, chamado “A Hora do Show” (Bamboozled).

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