ESPECIAL SOBRE DUNGA
"Aldeia", família e amigos explicam Dunga como ele é
Folha percorre caminho trilhado pelo técnico da seleção brasileira da infância em Ijuí à ascensão no Inter e encontra admiração, muita lealdade e até o boletim escolar
MARTÍN FERNANDEZ
ENVIADO ESPECIAL A IJUÍ E A PORTO ALEGRE
Dunga gosta de se referir ao Rio Grande do Sul como sua "aldeia". Há 11 meses, quando a seleção brasileira estava prestes a enfrentar o Peru em Porto Alegre, pelas eliminatórias, afirmou: "Por aquilo que conheço da minha aldeia, há uma cultura de, antes de tudo, acreditar nas coisas positivas".
Depois de amanhã, o técnico fará o anúncio mais importante de sua carreira. Convocará os 23 jogadores que irão defender a seleção brasileira na Copa do Mundo da África do Sul, que começa daqui a 33 dias.
Será surpresa se Dunga atender aos pedidos para que chame Neymar e Paulo Henrique Ganso, jovens astros do Santos, ou até Ronaldinho, já menos cotado nas últimas semanas.
Enquanto boa parte do país está pessimista com as prováveis escolhas de Dunga, a aldeia dele pensa diferente. Foi o que a Folha percebeu ao passar uma semana no Rio Grande do Sul, para traçar os primeiros passos de Dunga no futebol.
Em Ijuí, há unanimidade entre amigos, ex-companheiros, ex-rivais: os meninos do Santos devem ver a Copa pela TV, aprender o quanto for possível de longe e trabalhar duro para disputar o Mundial de 2014.
Na cidade onde Dunga é nome de praça, não se admite a hipótese de que sejam cortados da Copa os jogadores que roeram o osso e correram pelo "professor", em benefício de outros que nunca provaram nada com a camisa amarela.
Aos 15 anos, Dunga jogava entre adultos em Ijuí. "Vamos lá, que tu ainda vais ser a minha salvação", brincava o pai, Edelceu, que tentou evitar que o filho virasse jogador, mas se rendeu ante a vontade do guri.
Chegou bem recomendado ao Internacional, levado por Emídio Perondi, velho amigo da família, ex-presidente da Federação Gaúcha de Futebol e também ex-vice da CBF.
Mas teve que superar desconfianças sobre sua condição física -era considerado "forte demais". Venceu pela raça, ganhou espaço nas seleções de base e foi para o Corinthians.
O que leva o padrinho, Perondi, a repetir: "Dunga é resultado do próprio esforço, não da minha ajuda nem da ajuda de mais ninguém".
As origens de Dunga e sua trajetória como jogador ajudam a entender suas escolhas como técnico da seleção, assunto nacional hoje, tema único daqui a dois dias.
Os primeiros passos de Dunga
DO ENVIADO A IJUÍ E PORTO ALEGRE
Carlos Caetano Bledorn Verri tinha uma semana de vida quando Emídio Perondi comentou com o compadre Edelceu: "Com essas pernas grossas, essa cara de preguiçoso, isso aí vai ser um dunguinha, não vai querer saber de trabalhar".
Nos 46 anos seguintes, Dunga contrariou a previsão galhofeira do padrinho, contrariou muita gente e, provavelmente, vai contrariar outras mais na terça, quando anunciar a lista dos convocados para a Copa.
Muito do que Dunga mostrou em quase quatro anos como técnico da seleção é produto da infância no Rio Grande do Sul. "Era chorão, briguento e reclamão", diz o amigo da família Guto Valduga, 56, uma espécie de irmão mais velho. "Nem ele sabia que ia tão longe, mas sempre fez de tudo para isso." Era impossível que Dunga tentasse outra profissão. O avô paterno, o pai e todos os tios por esse lado da família jogaram futebol. Da mãe Maria, professora, herdou a disciplina, o respeito às regras.
Como qualquer guri de Ijuí, passou a infância jogando bola. O que o levou mais longe foram a força de vontade incomum e a ajuda das pessoas certas.
"Isso é bobagem, Dunga é um produto dele mesmo", diz Emídio Perondi, ex-prefeito de Ijuí, ex-deputado federal, ex- -presidente da Federação Gaúcha de Futebol, ex-vice-presidente da CBF para a região Sul e amigo de infância de Edelceu Verri, que o chamou para batizar os dois filhos.
No escritório de Perondi, em Porto Alegre, há um quadro com uma camisa da seleção, assinada por Dunga, com a dedicatória: "A gente consegue vencer quando se convence de que, para isso, é preciso ser gente".
Pé no chão
Os primeiros chutes e os carrinhos foram nas categorias de base do Esporte Clube São Luiz, o maior de Ijuí, que alterna períodos entre o profissionalismo e o amadorismo.
"Ele chegava aqui descalço, sem camisa, só de calção, jogava o dia inteiro, no campinho ao lado do gramado do time de cima", conta o zelador Alberi de Amorim, 62, funcionário do São Luiz há quase 30 anos.
Ali, Dunga foi "descoberto" pelo técnico Valdir Aguirre, que o levou para o Ouro Verde, um clube amador. Com 15 anos, Dunga jogava entre adultos.
Foi ali, diz quem conviveu com ele, que Dunga forjou sua personalidade futebolística. "Quando levava bronca, resignava-se, fechava a cara e brigava mais", conta Jair Bombardieri, 52, ex-lateral-direito.
Ari Bertolo, 62, fundador e ex-presidente do Ouro Verde, conta que Dunga se adaptou bem ao estilo quase militar do clube. "Era um time amador, mas organizado." As semelhanças com a seleção atual não são coincidência: "Um tinha que jogar por si e pelo grupo".
Dunga um dia ousou reclamar dos uniformes, que estavam ficando velhos. "Valdir Aguirre deu o pior par de meias para ele e disse: "Para ti tá bom demais". Ele ficou bravo, passou o jogo arrumando as meias, que caíam a toda hora, mas foi um leão", lembra Bertolo.
Rumo a Porto Alegre
Em 15 de março de 1980, Dunga, 16, disputou sua última partida pelo Ouro Verde. Foi a final do Campeonato Municipal de Ijuí. Dias depois da vitória por 3 a 0 sobre o São José, despediu-se da cidade.
A bordo do Passat cinza de Emídio Perondi, cruzou os 400 quilômetros de Ijuí a Porto Alegre e desembarcou no Internacional, clube que terminaria de formá-lo como jogador.
O adolescente se apresentou ao clube acompanhado de outro garoto ijuiense, este pouco mais velho. Paulo Roberto Wisseman havia se mudado um ano antes para a capital, a fim de estudar engenharia elétrica.
"Um dia, o Perondi bateu na minha porta, com o Dunga. Pediu para eu arrumar minhas coisas e nos levou ao Inter", relata Wisseman, hoje professor de educação física em Ijuí.
Quem recebeu o cartola e seus dois pupilos no Internacional foi Carlos Duran, o Martelo. Ex-craque do time vermelho nos anos 60, Duran era então supervisor de futebol.
"A gente acreditava muito nas indicações do Perondi", narra Duran, 74, que recebeu a Folha numa clínica geriátrica no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. "Houve uma recomendação muito forte pelo Dunga. Pelo outro, nem tanto."
Os dois jovens foram levados ao estádio dos Eucaliptos, hoje abandonado, mas à época casa das categorias de base do Inter.
Wisseman, lateral-esquerdo, fez testes, foi reprovado e seguiu carreira em times do interior. Voltou ao clube em 1987 e jogou a final da Copa União.
Os alojamentos das categorias de base na época não eram como os de hoje. "Dormíamos em colchões no chão. Comida não faltava, mas também não sobrava", narra João Carlos dos Santos, 47, companheiro de Dunga naquela época, hoje dono de um lava-rápido em Ijuí.
"A ajuda de custo que nos pagavam era algo como R$ 200 hoje", conta. Qualquer final de semana de folga significava voltar correndo para Ijuí. "Mas o sacrifício valia a pena."
João Carlos não vingou no Inter. Foi dispensado, rodou por clubes de Santa Catarina e Paraná, hoje é árbitro da FGF e se orgulha de ter trabalhado como auxiliar de Carlos Eugênio Simon e Leonardo Gaciba.
Enquanto isso, Dunga deixava de ser promessa. Ganhou tudo nas divisões inferiores do Inter e passou a frequentar seleções brasileiras de base.
Na bronca com o Inter
Em 1983, ano em que subiu para o profissional, esteve prestes a ser dispensado pelo técnico Dino Sani. Seu nome apareceu numa lista de jogadores a serem dispensados. O destino seria o Brasil de Pelotas.
"Foi a única vez em que eu de fato ajudei o Dunga", afirma Emídio Perondi. "Entrei na sala do Arthur Dallegrave [ex-presidente do Inter] e disse que ele não poderia fazer isso."
O cartola atendeu o pedido, Dunga ficou e foi campeão mundial sub-20 com a seleção brasileira, no México.
De volta à cidade natal, reclamou do Inter numa entrevista ao "Jornal da Manhã". Disse que não se sentia valorizado pelo clube gaúcho, acusou um dirigente de embolsar parte de seu salário e afirmou que preferia jogar no Rio ou em São Paulo. "Para me manter na vitrine." Três meses depois, como mostra o registro 2.720 da FGF, teve seu contrato mudado de "amador" para "profissional", com ordenado de CR$ 350 mil, dez salários mínimos da época, o que hoje significaria R$ 5.131. As "luvas" eram de CR$ 2 milhões, ou R$ 29.320, agora.
Carlos Duran, o supervisor do Inter, lembra-se dos primeiros dias de Dunga como profissional. "Todo mês ele entrava na minha sala com o contracheque, reclamando", diverte-se Duran. "Chiava que os descontos só aumentavam e eu explicava que, quanto mais ele ganhava, maiores seriam os impostos. Já era um pão-duro."
O Internacional chegou a recusar uma proposta de um empresário italiano pelo passe de seu volante. Mas, em 1984, o venderia ao Corinthians, numa transação intermediada por Juan Figer, o mesmo empresário que o levaria a Itália, Alemanha e Japão. (MARTÍN FERNANDEZ)
"TRICOLOR": GRÊMIO TEVE VISITA HÁ 30 ANOS
Em 1980, Dunga já morava no estádio dos Eucaliptos e treinava no Internacional quando recebeu a visita de Ari Bertolo, à época presidente do Ouro Verde. Bertolo havia combinado com Paulo Bonamigo (outro ijuiense, que jogava no Grêmio) de assistir a um jogo no estádio Olímpico. "Dunga foi comigo e viu a partida nas sociais do Grêmio. Hoje, uma situação assim seria impensável", diz Bertolo.
ESTIRPE: CRAQUE, PAI "FUGIU" DO CRUZEIRO
O centroavante Edelceu Verri era temido pelas zagas de Ijuí, Santo Angelo e outros municípios da região das Missões, no norte do Rio Grande do Sul. Nos anos 60, Emídio Perondi levou-o para um período de testes no Cruzeiro, de Porto Alegre, então terceira força do futebol gaúcho. "Ficou 15 dias e voltou correndo, com saudade da família", lembra Perondi. "Se tivesse ficado, poderia ter ido muito longe."
BRUCUTU: "PERNA GROSSA" FOI OBSTÁCULO
Para triunfar no Inter, Dunga teve que vencer a desconfiança. "Ele era baixinho, troncudo demais, com as pernas muito grossas", afirma Braulio Barbosa, ex-jogador e ex-auxiliar técnico do clube colorado. "O Abílio dos Reis, técnico da época, mandava ficar de olho na comida dele", diverte-se. O médico Paulo Rabello, que já trabalhava no clube, afirma que Dunga se impôs pela personalidade e pelo caráter.
Na escola, nunca faltava e era melhor em artes do que em educação física
DO ENVIADO A IJUÍ
Há relatos de que o pai de Dunga, Edelceu Verri, queixava-se de que o filho preferia jogar bola a estudar.
Mas as notas de Carlos Caetano na escola Rui Barbosa, onde estudou da quarta à oitava séries, não justificam nenhuma preocupação.
Dunga era um aluno disciplinado, segundo quem estudou ou deu aula para ele entre 1974 e 1978. Não há registro de confusão ou punição.
Nunca ficou em recuperação, faltou pouquíssimo às aulas. Futebol, apenas depois de voltar da escola. "Só ouço falar bem dele", atesta Beatriz Garay, 48, diretora da escola desde 2004.
Pelo menos nos boletins das quatro séries a que a Folha teve acesso, Dunga nunca tirou uma nota abaixo de 5, o mínimo para aprovação.
Fazia apenas o suficiente para passar em português e matemática -em ambas foi aprovado com média 5,1 da sexta à oitava séries.
Tirava notas um pouco melhores em ciências (ao redor de 6), em história e geografia (7). Foi muito bem na sétima série, quando teve aulas "técnicas": industriais (8), agrícolas (7,5), comerciais (9) e domésticas (8,5).
Em religião, foi aprovado com folga (8,1). Sempre foi bem em educação física, mas era melhor em educação artística: 7,2 contra 8,3 na sexta série, por exemplo. E preferia artes a educação moral e cívica: nesta, teve 7,8 também na sexta série. (MF)
Em Porto Alegre, técnico dispensa seguranças e carros blindados
DO ENVIADO A PORTO ALEGRE
Dunga nasceu em Ijuí, morou em Porto Alegre, São Paulo, Santos, Rio, Florença, Stuttgart, Shizuoka e finalmente voltou à capital gaúcha, de onde não saiu nem quando foi chamado para ser técnico da seleção brasileira -embora a sede da CBF fique no Rio e a concentração, em Teresópolis.
Em Porto Alegre, segundo os amigos, Dunga se sente mais à vontade do que em Ijuí, onde ainda moram pai, mãe e irmã.
"Toda vez que descobrem que ele está aqui [Ijuí], muita gente se aproxima para pedir alguma coisa, é chato para ele", diz Jair Bombardieri. A última visita à cidade natal foi na Páscoa, sem alarde, na surdina.
Dunga mora no bairro Ipanema, na zona sul da capital gaúcha. Passa os dias cuidando do jardim e tenta não perder a pelada que os vizinhos organizam toda segunda-feira -faltou às últimas devido a uma lesão.
Preza tanto sua privacidade que chamou a polícia quando humoristas fizeram plantão em frente à sua casa para pedir a presença de Neymar na Copa.
Dunga e a família, contudo, dispensam o uso de seguranças e carros blindados, para apreensão dos amigos. (MF)
Ijuí se une contra coro por Neymar na seleção
Amigos do treinador defendem que ele não convoque o atacante nem Ganso
"Esses guris têm bola, mas nunca jogaram na seleção principal", diz ex-dirigente de clube do RS em que Dunga atuou na infância
DO ENVIADO A IJUÍ
Se há um lugar no Brasil em que não haverá decepção na terça, caso Dunga ignore os clamores pelas convocações de Neymar e Paulo Henrique Ganso, é a terra natal do treinador.
Em Ijuí, há uma unanimidade oposta à do resto do país sobre as duas revelações do Santos: eles não devem disputar a próxima Copa do Mundo.
As justificativas que Dunga pode usar depois de amanhã são fartamente distribuídas pelas pessoas que conviveram (ou convivem) com o atual técnico da seleção brasileira.
Todos tomam o mesmo cuidado ao falar sobre o assunto: ninguém quer ser "a voz de Dunga", ninguém quer falar pelo treinador. Até porque, como diz Guto Valduga, "ele só continua nosso amigo porque nós não ficamos perguntando esse tipo de coisa para ele".
Ari Bertolo, ex-presidente do Ouro Verde, clube que Dunga defendeu no fim dos 70, conta uma história para explicar as prováveis escolhas do técnico.
"No fim de 1993, o Dunga veio aqui para inaugurar uma padaria, uma doação à prefeitura. E contou que o Parreira já sabia todo mundo que levaria para a Copa do ano seguinte. Com o Dunga é igual", diz.
"Esses guris têm bola, mas nunca jogaram na seleção principal. Pelo que eu conheço do Dunga, ele não vai levar. Se eu levaria? Não vou responder."
Outros respondem. Com mais ênfase do que o próprio Dunga provavelmente responderá nesta semana.
"Esse guri começou agora, ainda não tem firmeza para jogar uma Copa", afirma o massagista José Carlos Gräber, 67, que cuidou das pernas de Dunga nos tempos de Ouro Verde, há mais de 30 anos.
Também defensor da "família Dunga" e da tese de que deve ir à Copa quem "jogou pelo treinador", Gräber só admite uma exceção: "O Ronaldinho".
As recentes passagens de Neymar e Ganso pelas seleções brasileiras de base também servem para justificar a não convocação dos novatos.
"Neymar foi mal no Mundial sub-17", afirma Guto Valduga. De fato, a joia do Santos decepcionou no torneio disputado na Nigéria, assim como o resto da seleção. O Brasil não passou da primeira fase num grupo que tinha México, Suíça e Japão.
Ganso foi melhor no Mundial sub-20 do Egito, mas não foi o jogador que liderou o Santos ao título do Paulista deste ano.
"Tenho certeza de que serão grandes jogadores, que disputarão outras Copas. Só não acho justo deixar fora quem tem mais experiência", analisa Valduga. "Mas é duro ouvir o [Vanderlei] Luxemburgo pedindo a convocação dele [Neymar]. Até outro dia chamava o guri de filé de borboleta, não é?"
Jair Bombardieri evoca os tempos de Ouro Verde para defender a ausência dos santistas.
"Valdir Aguirre, nosso técnico naquela época, já sabia no início do ano quem estaria em campo nas finais. O Dunga é assim, confia no grupo e o grupo confia nele", lembra. "Neymar é muito novo", completa.
Emídio Perondi, o padrinho do técnico, mora há décadas em Porto Alegre, mas pensa como os conterrâneos ijuienses. "Tem que levar quem ralou por ele." (MARTÍN FERNANDEZ)